CRISTÃOS, VOCÊS NÃO PRECISAM COMPRAR UM LIVRO, OU FAZER UM CURSO PARA TER RELACIONAMENTOS SAUDÁVEIS COM PESSOAS LGBTQIA+!

Eu me dedico a estudar a relação entre cristianismo e pessoas LBTQIA+ há quase uma década. Eu não tive o privilégio que muitos têm de fazer isso de fora, como é o caso da esmagadora maioria dos cristãos famosos que estão falando sobre pessoas LGBTQIA+ no Brasil. O que eu estou chamando de privilégio é meramente o ato de poder estudar sobre pessoas LGBTQIA+ sendo heterossexual, sem estar sujeito as violências que nós pessoas LGBTQIA+ sofremos cotidianamente. Antecipo que não há nenhum problema em pessoas heterossexuais falando sobre pessoas LGBTQIA+ e que façam sugestões para acabar com a LGBTfobia, desde que elas sejam minimamente informadas, o que geralmente não acontece. Imagina o peso que é sobreviver em uma sociedade que está constantemente deslegitimando a sua existência e ainda ficar como responsável para elaborar táticas para acabar com a LGBTfobia.

A LUTA CONTRA A LGBTFOBIA É UMA LUTA QUE OBRIGATORIAMENTE DEVE INCLUIR A CONTRIBUIÇÃO DE PESSOAS HETEROSSEXUAIS. ELAS DEVERIAM SE DEDICAR COM MAIS FORÇA, JÁ QUE NÃO SOFREM DISCRIMINAÇÃO POR SUA IDENTIDADE SEXUAL OU DE GÊNERO. A LUTA CONTRA A LGBTFOBIA É UMA LUTA PELA VALIDADE DA DIGNIDADE INTRÍNSECA DE CADA SER HUMANO CONCEDIDA POR DEUS.

Quando eu percebi que eu não era hétero, eu passei a pesquisar desesperadamente por conteúdos que abordassem a relação entre cristianismo e homossexualidade. Li algumas coisas boas em sites, livros, vi vídeos. Mas me deparei com muita coisa ruim e desonesta. O que me salvou foi o blog Spiritual Friendship, principalmente os textos dos autores Ron Belgau e Wesley, ambos gays e celibatários. O Ron é um filósofo católico, o Wes hoje é um pastor anglicano.

Eu li compulsivamente dezenas de textos desses homens usando o google tradutor, eu tive que copiar e colar várias vezes, porque eu não leio em inglês. Mas eu precisava sobreviver dentro da igreja. Eu queria ser honesto com a minha fé, mas também queria ser honesto comigo mesmo. Hoje, depois de consumir tantos conteúdos, ter sido alvo de homofobia [1] algumas vezes e de ter sofrido pra caramba, eu posso dizer que estou em paz. Tenho uma relação saudável com a minha igreja local e com vários outros cristãos heterossexuais e LGBTQIA+ espalhados em várias cidades, sou amado e respeitado e tenho retribuído esse amor e respeito.

Eu e alguns amigos tivemos a iniciativa de começar um blog que se chama Vivendo em comunhão. Ele completou um ano recentemente. Nós não temos muita visibilidade. No entanto, temos alcançado algumas pessoas de maneira eficaz. Alguns dos nossos leitores se tornaram amigos muito próximos. Nós nunca cobramos por nenhum conteúdo nosso. Nós fazemos esse trabalho porque estamos cansados de sofrer violências ou de ver pessoas que realmente amamos e nos importamos sendo vítimas de atos desumanos. Nós não podemos ficar calados. Eu mesmo já falei em alguns eventos, orientei vários pastores e uma pastora, além de outros cristãos que estão preocupados com pessoas LGBTQIA+. Tudo isso de graça!

É extremamente irritante quando volta e meia surge alguém com propostas que prometem fazer contribuições significativas, para uma melhor relação entre igreja e pessoas LGBTQIA+. Por mais bem intencionadas que elas sejam e que tenham se dedicado a estudar o tema, seus cursos geralmente não têm preços tão acessíveis e não costumam oferecer possibilidade de bolsas para quem não pode pagar e acha que precisa fazer um curso para entender pessoas LGBTQIA+.

Fora que os currículos não costumam ser nada atraentes, prometem respostas para perguntas que praticamente ninguém está fazendo e com pouca ou nenhuma utilidade para o cotidiano. Além disso, geralmente há bastante ignorância e distorção sobre os estudos realizados por pessoas LGBTQIA+ não cristãs, ou até mesmo estudos sérios de cristãos que destoam um pouco da visão fundamentalista. Eu já tive contato com várias pessoas que fizeram alguns desses cursos. É triste ver como gente que realmente tem interesse em tornar a igreja um ambiente saudável, para que pessoas LGBTQIA+ possam transitar, ficam frustradas com esses cursos.

Algo que aprendi vivendo abertamente como um cristão LGBTQIA+ e sendo celibatário é que as pessoas não precisam de muito conhecimento sobre gênero e sexualidade para que nós possamos desenvolver bons relacionamentos. A história com a minha mãe foi bem assim. Ela não tem nem a quarta série completa e isso não foi nenhum empecilho para que ela entendesse que tem um filho LGBTQIA+. Os pastores e os cristãos leigos heterossexuais que eu tenho me relacionado e mais tenho me dado bem, não são as pessoas que leram livros ou fizeram um curso para entender a maneira adequada de se relacionar com pessoas LGBTQIA+. Elas simplesmente me trataram como um ser humano. E sendo um ser humano eu tenho uma história específica e uma série de experiências que vão se revelando à medida que caminhamos juntos.

Algo muito agradável que tem acontecido, ao me relacionar com pessoas que consumiram pouco conhecimento sobre cristianismo e pessoas LGBTQIA+, é que eu posso contar a minha própria história, as minhas virtudes e os meus vícios. Tendo elas pouco conhecimento, elas não ficam tentando me colocar dentro de uma narrativa que não é a minha. É possível ter muito conhecimento e ser sensível à pluralidade de narrativas de pessoas LGBTQIA+. No entanto, o que mais tem acontecido aqui no Brasil é uma mutilação da identidade de pessoas LGBTQIA+ para que elas se encaixem numa narrativa de pessoas que “saíram da homossexualidade”, ou que se veem apenas como “filhas de Deus”, não podem usar um rótulo LGBTQIA+ e demonizam pessoas LGBTQIA+ que estão fora da igreja, ou cristãos que não veem problema em interagir com a cultura LGBTQIA+.

Relacionando-me com vários cristãos reais LGBTQIA+ do Brasil de todas as regiões, articulando com a minha experiência e a de outros cristãos de outros países, algo que tenho notado é que nós não precisamos de um pastor e de uma igreja que tenham lido o último livro cristão que saiu sobre “a prática homossexual e a Bíblia”, ou feito um curso sobre o que a “cosmovisão cristão” (seja lá o que isso significa!) tem a dizer sobre gênero e sexualidade, ou ainda de palestras sobre o que Bíblia tem a dizer sobre “ideologia de gênero” (algo que só existe na imaginação de quem nunca parou para refletir de maneira séria e honesta, sobre a discussão acerca de gênero, sexualidade e educação!).

O que realmente funciona no cotidiano é ter pessoas que nos ame e nos respeite como nós somos, e que possamos retribuir esse amor e respeito. É muito mais fácil dar uma lista de o que fazer e o que não fazer ao se relacionar com pessoas LGBTQIA+. No entanto, as pessoas LGBTQIA+, como os demais seres humanos, são múltiplas e lidam com suas experiências de maneira diversa. Sendo assim, antes de tentar aplicar o que se leu em um livro ou se viu em um curso, é preciso ouvir as pessoas LGBTQIA+ e agir a partir de suas demandas.

Pessoas LGBTQIA+ não são difíceis de compreender a ponto de você precisar de um manual para se relacionar de maneira saudável com elas. Geralmente elas sabem quem são, ou estão se descobrindo, mas já têm algumas certezas. Cada pessoa vai demandar um tempo específico, e tudo bem não ter respostas para todos os questionamentos no momento, ou nunca.

A maior preocupação deve ser a preservação da integridade da pessoa LGBTQIA+. Ela não deve se sentir violentada na igreja, ou em um relacionamento com um cristão fora do ambiente eclesiático. Ela deve ser respeitada e haver sempre abertura para que ela possa comunicar algum desconforto, que com certeza haverá, como há em todas as relações. Mas com fé, esperança e, sobretudo, com amor, é possível haver bons relacionamentos entre cristãos e pessoas LGBQIA+, estejam elas dentro ou fora da igreja.

Eu tenho absoluta certeza que nenhum cristão precisa comprar um livro, ou pagar algum curso para se relacionar de maneira saudável com pessoas LGBTQIA+. No entanto, eu não estou dizendo que cristãos precisam ser ignorantes em relação a pessoas LGBTQIA+. Há muito conteúdo disponível na internet de maneira gratuita. Eu vou deixar o link de materiais cristãos confiáveis disponíveis abaixo. É necessário também consumir conteúdos de não cristãos, há vários canais no you tube, revistas acadêmicas, blogs podcasts (bastante coisa pode ser encontrada no #LGBTPodcasters)e tudo isso de graça.

Se você tem interesse em desenvolver relacionamentos saudáveis com pessoas LGBTQIA+ e incentivar a igreja a fazer isso, tenha-me como seu aliado. Eu posso ser encontrado nas redes sociais como @reginaldostg e no e-mail reginaldostgomes@gmail.

Que Deus tenha misericórdia da sua igreja e possamos cumprir a nossa vocação não somente de dizer a verdade, mas vivê-la amando pessoas concretas como elas são, não como gostaríamos que elas fossem.

Oração de São Francisco adaptada:

Senhor, que a gente seja instrumento da sua paz
Onde houver ódio, que a gente leve o amor
Onde houver ofensa, que a gente leve o perdão
Onde houver discórdia, que a gente leve a união
Onde houver dúvida, que a gente leve a fé

Onde houver erro, que a gente a verdade
Onde houver desespero, que a gente leve a esperança
Onde houver tristeza, que a gente leve alegria
Onde houver trevas, que a gente leve a luz

Ó mestre, faça com que a gente procure mais
Consolar que ser consolados
Compreender que ser compreendidos
Amar que ser amados
Pois, é dando que se recebe
É perdoando que se é perdoado
E é morrendo que se vive
Para a vida eterna

Por uma relação saudável entre Igreja e pessoas LGBTQIA+: conheça mais de 30 referências gratuitas (textos, podcasts, vídeos, páginas, blogs)

1 Homofobia na igreja: passar pano ou cancelar? Eu escrevi aqui alguns relatos de homofobia que sofri na igreja. Hoje eu estou bastante disposto ao diálogo e não guardo mágoa de ninguém. Inclusive até tenho me reaproximado de algumas pessoas que se silenciaram diante de tudo isso. Tem sido uma boa reconciliação.

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Reginaldo dos Santos Gomes (Casa Aelredo)

Maranhense. Neurodivergente. Amigo. Crítico cultural (IFG/UFG/UFMG/IFRS). "Deus é Amizade", Aelredo de Rievaulx.